Diz que um dia, numa monografia, uma crase indevida topou com uma vírgula mal colocada. “Ué”, disse a crase, “Não sabia que você era o pomo da discórdia”. “Como assim?”, pontuou a vírgula, e a crase: “Fica aí, separando o sujeito do verbo principal, hahahahahaha”. Sim, esqueci de dizer que a crase indevida era piadista. Mas a vírgula mal colocada não deixou por menos: “E eu não conhecia essa sua vocação pra polícia”. A crase indevida pensou “ai, ai”, mas deu a deixa: “Como assim, polícia?” E a vírgula: “Só aparece quando não precisa!” Sim, não falei que a vírgula mal colocada era uma piadista medíocre. Esforçada, mas medíocre. “Pssst”, disse a crase indevida, cutucando a vírgula, “lá vem o ésse que acha que é zê.” Como o problema da crase e da vírgula envolvia apenas emprego errado (ou seja, desajustes de projeto de vida), elas se permitiam esses gracejos. Mas com o ésse que acha que é zê a questão se afigurava como psiquiátrica, então era melhor não achincalhar. “Olá, ésse!”, disse estabanadamente a mal colocada vírgula, tentando de forma desajeitada disfarçar o que cochichavam – e o ésse grunhiu: “Quem é ésse aqui? Quem é ésse aqui? Eu sou um zê”. A crase, que era indevida e por isso mesmo pensava rápido, arrematou: “Não, ela ia dizendo ‘olá, esselentíssimo zê!’ ” A vírgula mal colocada já ia cochichando “Mas excelentíssimo não é com cê?”, porém a crase indevida deu-lhe o devido pisão no pé e retomou a conversa com o ésse que acha que é zê: “A que devemos sua visita a este humilde parágrafo?” O ésse que acha que é zê carregou mais ainda o ar grave, grave como um acento: “Vim aqui falar da última lenda gramatical. Já ouviram?” A crase indevida falou: “Lenda gramatical? Do tipo aquela que reza que existe um jacaré albino em todos os subtextos?” “Não”, disse o ésse que acha que é zê, olhando para os lados: “Bem pior do que o jacaré: eu falo da cobrinha do corretor ortográfico!” A crase indevida e a vírgula mal colocada se entreolharam como quem pensa “Ih, agora vem de surto paranóico”, mas fingiram interesse e o ésse que acha que é zê continuou: “É uma cobrinha, ora verde, ora vermelha, que fica se arrastando debaixo de nossos pés e, como típica predadora, promove nosso rápido aniquilamento!” A crase indevida sinalizou: “Mas você já viu uma?” “Não”, cortou o ésse que acha que é zê, “mas fiquei sabendo de uma cedilha equivocada que sumiu assim, de repente, na semana passada. E juram que momentos antes foi vista uma cobrinha vermelha ondulando debaixo dela.” A crase indevida e a vírgula mal colocada permaneceram mudas, mudas como o pê de psiquiatria. O ésse que acha que é zê percebeu isso, imaginou que fosse uma indireta grosseira e bateu em retirada, vociferando “Certo, na hora agá não digam que eu não avisei!” Quando ficaram novamente sozinhas, a vírgula mal colocada pontuou à crase indevida: “O que ele quis dizer com isso de ‘hora verde’, ‘hora vermelha’? Tou achando que além de ruim da cabeça ele é ruim de metáfora...” Mas a crase indevida fingiu que não ouviu e só comentou, cautelosa: “De qualquer modo é melhor andar de olho no pé da letra. Nunca se sabe”. Mas no fim das contas nada sinistro aconteceu à crase indevida e à vírgula mal colocada – porque era uma monografia de MBA, e então elas viveram felizes para sempre. Com a pulga atrás da orelha, sim, mas felizes.
domingo, 27 de novembro de 2011
LENDA GRAMATICAL
Diz que um dia, numa monografia, uma crase indevida topou com uma vírgula mal colocada. “Ué”, disse a crase, “Não sabia que você era o pomo da discórdia”. “Como assim?”, pontuou a vírgula, e a crase: “Fica aí, separando o sujeito do verbo principal, hahahahahaha”. Sim, esqueci de dizer que a crase indevida era piadista. Mas a vírgula mal colocada não deixou por menos: “E eu não conhecia essa sua vocação pra polícia”. A crase indevida pensou “ai, ai”, mas deu a deixa: “Como assim, polícia?” E a vírgula: “Só aparece quando não precisa!” Sim, não falei que a vírgula mal colocada era uma piadista medíocre. Esforçada, mas medíocre. “Pssst”, disse a crase indevida, cutucando a vírgula, “lá vem o ésse que acha que é zê.” Como o problema da crase e da vírgula envolvia apenas emprego errado (ou seja, desajustes de projeto de vida), elas se permitiam esses gracejos. Mas com o ésse que acha que é zê a questão se afigurava como psiquiátrica, então era melhor não achincalhar. “Olá, ésse!”, disse estabanadamente a mal colocada vírgula, tentando de forma desajeitada disfarçar o que cochichavam – e o ésse grunhiu: “Quem é ésse aqui? Quem é ésse aqui? Eu sou um zê”. A crase, que era indevida e por isso mesmo pensava rápido, arrematou: “Não, ela ia dizendo ‘olá, esselentíssimo zê!’ ” A vírgula mal colocada já ia cochichando “Mas excelentíssimo não é com cê?”, porém a crase indevida deu-lhe o devido pisão no pé e retomou a conversa com o ésse que acha que é zê: “A que devemos sua visita a este humilde parágrafo?” O ésse que acha que é zê carregou mais ainda o ar grave, grave como um acento: “Vim aqui falar da última lenda gramatical. Já ouviram?” A crase indevida falou: “Lenda gramatical? Do tipo aquela que reza que existe um jacaré albino em todos os subtextos?” “Não”, disse o ésse que acha que é zê, olhando para os lados: “Bem pior do que o jacaré: eu falo da cobrinha do corretor ortográfico!” A crase indevida e a vírgula mal colocada se entreolharam como quem pensa “Ih, agora vem de surto paranóico”, mas fingiram interesse e o ésse que acha que é zê continuou: “É uma cobrinha, ora verde, ora vermelha, que fica se arrastando debaixo de nossos pés e, como típica predadora, promove nosso rápido aniquilamento!” A crase indevida sinalizou: “Mas você já viu uma?” “Não”, cortou o ésse que acha que é zê, “mas fiquei sabendo de uma cedilha equivocada que sumiu assim, de repente, na semana passada. E juram que momentos antes foi vista uma cobrinha vermelha ondulando debaixo dela.” A crase indevida e a vírgula mal colocada permaneceram mudas, mudas como o pê de psiquiatria. O ésse que acha que é zê percebeu isso, imaginou que fosse uma indireta grosseira e bateu em retirada, vociferando “Certo, na hora agá não digam que eu não avisei!” Quando ficaram novamente sozinhas, a vírgula mal colocada pontuou à crase indevida: “O que ele quis dizer com isso de ‘hora verde’, ‘hora vermelha’? Tou achando que além de ruim da cabeça ele é ruim de metáfora...” Mas a crase indevida fingiu que não ouviu e só comentou, cautelosa: “De qualquer modo é melhor andar de olho no pé da letra. Nunca se sabe”. Mas no fim das contas nada sinistro aconteceu à crase indevida e à vírgula mal colocada – porque era uma monografia de MBA, e então elas viveram felizes para sempre. Com a pulga atrás da orelha, sim, mas felizes.
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