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domingo, 27 de novembro de 2011

LENDA GRAMATICAL



Diz que um dia, numa monografia, uma crase indevida topou com uma vírgula mal colocada. “Ué”, disse a crase, “Não sabia que você era o pomo da discórdia”. “Como assim?”, pontuou a vírgula, e a crase: “Fica aí, separando o sujeito do verbo principal, hahahahahaha”. Sim, esqueci de dizer que a crase indevida era piadista. Mas a vírgula mal colocada não deixou por menos: “E eu não conhecia essa sua vocação pra polícia”. A crase indevida pensou “ai, ai”, mas deu a deixa: “Como assim, polícia?” E a vírgula: “Só aparece quando não precisa!” Sim, não falei que a vírgula mal colocada era uma piadista medíocre. Esforçada, mas medíocre. “Pssst”, disse a crase indevida, cutucando a vírgula, “lá vem o ésse que acha que é zê.” Como o problema da crase e da vírgula envolvia apenas emprego errado (ou seja, desajustes de projeto de vida), elas se permitiam esses gracejos. Mas com o ésse que acha que é zê a questão se afigurava como psiquiátrica, então era melhor não achincalhar. “Olá, ésse!”, disse estabanadamente a mal colocada vírgula, tentando de forma desajeitada disfarçar o que cochichavam – e o ésse grunhiu: “Quem é ésse aqui? Quem é ésse aqui? Eu sou um zê”. A crase, que era indevida e por isso mesmo pensava rápido, arrematou: “Não, ela ia dizendo ‘olá, esselentíssimo zê!’ ” A vírgula mal colocada já ia cochichando “Mas excelentíssimo não é com cê?”, porém a crase indevida deu-lhe o devido pisão no pé e retomou a conversa com o ésse que acha que é zê: “A que devemos sua visita a este humilde parágrafo?” O ésse que acha que é zê carregou mais ainda o ar grave, grave como um acento: “Vim aqui falar da última lenda gramatical. Já ouviram?” A crase indevida falou: “Lenda gramatical? Do tipo aquela que reza que existe um jacaré albino em todos os subtextos?” “Não”, disse o ésse que acha que é zê, olhando para os lados: “Bem pior do que o jacaré: eu falo da cobrinha do corretor ortográfico!” A crase indevida e a vírgula mal colocada se entreolharam como quem pensa “Ih, agora vem de surto paranóico”, mas fingiram interesse e o ésse que acha que é zê continuou: “É uma cobrinha, ora verde, ora vermelha, que fica se arrastando debaixo de nossos pés e, como típica predadora, promove nosso rápido aniquilamento!” A crase indevida sinalizou: “Mas você já viu uma?” “Não”, cortou o ésse que acha que é zê, “mas fiquei sabendo de uma cedilha equivocada que sumiu assim, de repente, na semana passada. E juram que momentos antes foi vista uma cobrinha vermelha ondulando debaixo dela.” A crase indevida e a vírgula mal colocada permaneceram mudas, mudas como o pê de psiquiatria. O ésse que acha que é zê percebeu isso, imaginou que fosse uma indireta grosseira e bateu em retirada, vociferando “Certo, na hora agá não digam que eu não avisei!” Quando ficaram novamente sozinhas, a vírgula mal colocada pontuou à crase indevida: “O que ele quis dizer com isso de ‘hora verde’, ‘hora vermelha’? Tou achando que além de ruim da cabeça ele é ruim de metáfora...” Mas a crase indevida fingiu que não ouviu e só comentou, cautelosa: “De qualquer modo é melhor andar de olho no pé da letra. Nunca se sabe”. Mas no fim das contas nada sinistro aconteceu à crase indevida e à vírgula mal colocada – porque era uma monografia de MBA, e então elas viveram felizes para sempre. Com a pulga atrás da orelha, sim, mas felizes.

Nelson Moraes  

 

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