Esse é o título de um clássico documentário do cineasta Eduardo Coutinho (1985). Diferente de tudo que eu havia assistido. Sábado passado, mergulhei nessa parte da história do Brasil, uma retrato importante da vida política do nosso Nordeste e o do nosso país. Um filme interrompido pelo regime militar de 1964. Após 17 anos, o cineasta volta aos locais onde começara as filmagens e fora apreendidos os seus equipamentos. O resultado foi um excelente documentário sobre a luta do homem do campo por uma reforma agrária justa e a história de uma família, separada pela ditadura militar.
No último dia 2 de abril foi lembrado o cinquentenário da morte do agricultor, sindicalista e líder das Ligas Camponesas na Paraíba, João Pedro Teixeira, nas proximidades da cidade de Sapé-PB. Em 1962 ele foi assassinado covardemente numa emboscada, quando voltava pra casa carregando nas mãos livros que levaria para seus filhos.
QUEM FOI ESSE HOMEM??
João Pedro Teixeira nasceu em 4 de março de 1918, em Pilõezinhos, naquele tempo um distrito do município de Guarabira (PB). É filho de um pequeno produtor do mesmo nome (João Pedro Teixeira) e Maria Francisca da Conceição do Nascimento.
Toda a revolta de João Pedro contra o modo de trabalho imposto aos camponeses começou com os ensinamentos de seu pai, que se envolveu em um conflito na propriedade, da qual era arrendatário. Não aceitou que o proprietário quisesse se apossar de uma parte das terras. A disputa começou na época em que nasceu o futuro líder das Ligas Camponesas, e durou seis anos. A tensão era muito grande, que num forró, dois filhos do dono com mais dois capangas provocaram uma briga. Para não morrer, João Pedro, pai, acabou matando os dois. Fugiu e nunca mais foi visto. Esta dor o filho carregou por toda a vida.
A mãe mudou-se para Guarabira e depois para Sapé. Levou a filha, mas João Pedro foi entregue aos avós. Quando o avô morreu, um irmão do pai terminou criando João Pedro Teixeira, em Massangana, em Cruz do Espírito Santo.
Ali João Pedro aprendeu a trabalhar na roça, mas quando ficou de maior, foi trabalhar na pedreira perto de Café do Vento. Aí conheceu Elisabeth com quem se casou em 26 de julho de 1942, tendo que fugir, pois os pais eram contra. Elisabete tinha 17 anos de idade; era a mais velha dos nove filhos de Manoel Justino da Costa e de Altina Maria da Costa.
De 1942 a 1944, o casal morou no Sítio Massangana, onde o gerente do Engenho Massangana era Luiz Pedro, tio de João Pedro, que os tratou como filhos. João Pedro ajudava o tio. Mas por discordar do tratamento que o tio dispensava aos trabalhadores acabou deixando o roçado. Abrigou Elisabeth e o bebê (Marluce) na casa da mãe dele em Sapé, e foi procurar serviço em Recife. Em janeiro de 1945, levou a família para Jaboatão, onde foi trabalhar numa pedreira.
Logo apareceram as injustiças na pedreira e João Pedro se tornou o líder dos operários. Foi se aproximando do Partido Comunista e, em 1948, começaram as reuniões em sua casa. Criou o Sindicato dos Operários de Pedreiras, tendo ele sido eleito presidente. As perseguições não tardaram. João Pedro não conseguia mais emprego. Elisabeth conseguiu ganhar um pouco num mercado, mas a pobreza era demais. Euclides Justino da Costa, irmão mais velho de Elisabete, encontrou-os em 1954. Ficou com pena de vê-los, com 6 filhos, naquela penúria. Convidou-os a voltar para Sapé e tomar conta de um sítio recém comprado pelo pai de nome Antas do Sono, vizinho do Sítio do Pai. Mesmo com receio do pai, que não escondia não gostar do genro, pobre, preto e teimoso, voltaram para Sapé, na Paraíba, em maio de 1954.
Família de João Pedro Teixeira
Nessa época, João Pedro já conhecia as Ligas, no Engenho Galiléia, em Pernambuco. O sogro Manoel Justino até ajudou, dando alguns moradores da sua fazenda para limpar o roçado do genro, e preparar a terra para o plantio. Logo, João Pedro observou que estes moradores só traziam um pouco de farinha, rapadura e piaba para almoçar. Não tardou para descobrir que aquela era a situação de todas as famílias camponesas da redondeza.
Em 1955, aconteceu o primeiro Encontro dos Camponeses de Sapé, na casa de João Pedro, com a presença de outros líderes como Nego Fuba (João Alfredo Dias) e Pedro Fazendeiro (Pedro Inácio de Araújo) - os dois primeiros desaparecidos políticos do Regime Militar de 1964.
A reação do pai de Elisabeth e de todos os latifundiários foi grande. João Pedro foi preso no dia seguinte e espancado. Mesmo assim a luta continua com reuniões relâmpagos nas fazendas, nas feiras e na sapataria de Nego Fuba, em Sapé. O movimento crescia, atraindo também gente graúda da cidade. A luta para eliminar o “cambão” (a obrigação de trabalhar um dia de graça na terra do proprietário) foi o principal argumento para criar uma entidade associativa para acolher os trabalhadores e organizá-los melhor.
Assim, em fevereiro de 1958, a Associação dos Lavradores Agrícolas de Sapé, conhecida pelo nome de “Ligas Camponesas de Sapé”, foi fundada, tendo João Pedro como vice-presidente. Ele também representava 14 Ligas Camponesas, na Federação das Liga Camponesas da Paraíba, da qual também era vice-presidente, em 1961. Nesta função viajava muito para João Pessoa para reuniões e reivindicações em benefício dos camponeses, junto ao governador Pedro Gondim.
As ações em defesa dos direitos dos camponeses eram feitas em mutirões com centenas de companheiros, que eram transportados em caminhões. Eram ações para arrancar cercas, plantar onde os patrões tinham destruído lavouras, reparar casas, defender companheiros prejudicados de todas as formas e as campanhas de massa. Com isso, as Ligas de Sapé cresceram, atingindo mais de 10 mil associados.
O sogro Manoel Justino vendeu até o Sítio Antas de Sono, quando viu que nada mudava a cabeça de João Pedro e nem conseguiu mandá-lo embora deste sítio, com Elisabeth e as 11 crianças, em 1961. Com o novo dono, Antônio Vítor, e o apoio dos latifúndios, aumentaram as ameaças para expulsar João Pedro Teixeira, com tiros nas paredes da sua casa e todos os tipos de ameaças à sua família. Elisabete chegou a aconselhar João Pedro a ir para o Sul do país, para escapar das ameaças. Mas o líder dizia à esposa: “Você e meus filhos podem ir. Fico com os retratos, mas não me acovardo”. Nesta época João Pedro já era o presidente da Ligas de Sapé.
As ameaças de morte contra ele circulavam em todos os locais de Sapé, através de capangas. Além dos problemas na Liga, João Pedro tinha que enfrentar o novo dono do Sítio, Antônio Vítor, e teve que se defender na justiça contra um processo de despejo. Com isso, já não dormia direito nos últimos meses de vida. “Ele se levantava todas as noites, ia de cama em cama e de rede em rede, ver todos os filhos, chorando; ele amava os filhos e era um esposo muito bom. João Pedro sabia que um dia não iria escapar. E sofria muito com isso, mas escondia. Abraçava e esposa todas as vezes que tinha que viajar, e, de vez em quando, lhe perguntava: “Elisabeth, quando eu morrer, você continuará a minha luta?”
Em 2 de abril de 1962, João Pedro tinha que se apresentar em João Pessoa, por causa do processo de despejo; o novo dono ia fazer um acordo. Chegando a João Pessoa, o advogado comunicou que a reunião tinha sido adiada para a tarde. Isso fazia parte da trama para matá-lo. Funcionou; conseguiram matar João Pedro neste dia, numa emboscada.
Saindo no último ônibus, indo a pé, já perto de sua casa, atiraram nas costas dele. Três tiros brutais, planejados por Antônio Vítor, Agnaldo Veloso Borges e Pedro Ramos Coutinho, como confessou o Cabo Chiquinho que praticou o crime com mais dois capangas.
“ …Seu peito atlético ficou tão estragado que à primeira vista não erraríamos em pensar que os latifúndios usaram foices em vez de fuzil. (…) seu corpo comprido cravado de balas e entornado de sangue, parecia a imagem de Jesus morto….”. (Jório Machado)
Elisabeth só soube da morte do marido na manhã seguinte. E ao ver o corpo, chorando disse “João Pedro, por mais de uma vez você me perguntou se eu daria continuidade à sua luta, e eu nunca te dei minha resposta. Hoje eu te digo, com consciência ou sem consciência de luta, eu marcharei na sua luta, pro que der e vier ”. Mais de cinco mil camponeses acompanharam o enterro.
Elizabeth Teixeira, 86 anos, viúva de João Pedro Teixeira. Elizabeth, que, após a morte do marido, assumiu a liderança deste movimento em Sapé com 11 filhos, se diz "cansada pela história".
Elizabeth Teixeira em 2 de abril de 2012, na inauguração do "Memorial das Ligas Camponesas", antiga casa onde morava com a família, em Sapé-PB. "Sinto-me lisonjeada pela homenagem do governo, espero que a luta pela terra continue."
Discurso feito pelo tribuno Raymundo Asfora no dia 3 de abril de 1962 na ocasião de comício público realizado no Ponto de Cem Réis em João Pessoa, no dia seguinte à morte de João Pedro Teixeira.
"Um tiro franziu o azul da tarde e ensangüentou o peito de um camponês. Foi assim que João Pedro morreu. Eu o vi morto no hospital de Sapé. Peguei na alça do seu caixão e, ao lado de outros companheiros e milhares de camponeses, levei-o ao cemitério. Estava com os olhos abertos. A morte não conseguiu fechar os olhos de João Pedro. Brilhavam numa expressão misteriosa e estranha, como se tivessem sido tocados por um clarão de eternidade. Os seus olhos, os olhos de João Pedro, estavam escancarados para a tarde. E, dentro deles, eu vi – juro que eu vi – havia uma réstia verde que bem poderia ser saudade dos campos ou o fogo da esperança que não se apagara. Tinha sido avisado de que o perseguiam. Assistira, certa vez, ao lado da esposa, a uma ronda sinistra em torno do seu lar. Talvez soubesse tudo, mas aprendera, na poesia revolucionária do mundo, que é melhor morrer sabendo do que viver enganado.
Por que mataram João Pedro? Por que o trucidaram? E de emboscada? Mataram João Pedro porque ele havia sonhado com um mundo melhor para si e para os seus irmãos. Idealista puro, ele não compreendia nunca, na sua inteligência ágil e no seu raciocínio acertado, como todas as terras da Várzea do Paraíba pertenciam apenas a proprietários que poderia ser contados nos dedos de uma mão. E tantos homens sem terra e tantos homens aflitos e tantos homens com fome! Sonhara com a reforma agrária. Mas, não pensava na revisão dos estatutos das glebas empunhando uma foice ou um bacamarte, na atitude dos desesperados. Apelava, apenas, para a organização da opinião campesina, da opinião dos campos, porque organizada a opinião do povo, tudo mais ficaria organizado.
Nunca me deparei, paraibanos, com uma população rural tão penetrada e compenetrada de consciência de classe, do valor da disciplina e da coesão como os lavadores de Sapé. Foi João Pedro quem os convenceu, mobilizando-os, ardentemente, em cada feira e em cada roçado. Argumentando sempre, com uma fé inquebrantável, sobre a necessidade da formação do seu sindicato. De um sindicato igual aos vossos, trabalhadores de João Pessoa, respeitado pelos patrões, protegido e protetor. Por que os latifundiários não querem respeitar as ligas camponesas? Por quê? Não se organizam eles nas cidades? Nas associações comerciais, nas federações das indústrias, não freqüentam eles o Clube Cabo Branco, o Clube Astréa, os clubes do Recife e do Rio? Por que os camponeses não têm direito de ter a sua Liga?
O campo se priva de tudo para nos promover de tudo. Sem a enxada, que fecunda o ventre da terra, para a gravidez da semeadura e o parto da colheita, nada chegará às nossas mesas. A vida vem dos campos. Sem o suor, sem a fadiga dos campônios, jamais alcançaremos a fartura do povo, e a pobreza será cada vez mais infeliz e desamparada.Os latifundiários, todavia, na sua ganância, fingem desconhecer essa verdade, e na sua cupidez e na sua egolatria, negam aos pobres até o direito de ter fome. Fecham as suas propriedades ao cultivo, trazem-nas avaramente estagnadas, mandando matar aqueles que desejam transformá-las num instrumento de produção e de felicidade social. São tão mesquinhos, no seu egoísmo, que, na expressão de um ironista, deixariam o universo às escuras, se fosse proprietários do sol.
Eu vi João Pedro morto. Os seus olhos ainda estavam abertos. Eles tinham visto muito. Tinham visto quase tudo à sombra do Sobrado, povoado de Sapé, ouvira, talvez, contar na varanda de sua casa tosca, a história dos pais e dos avós que cultivaram aquelas terras. Sempre sob o regime do cambão, da terça e do cambito. Desse miserável cambão, dessa hedionda terça, desse desumano cambito, que deve ser varrido de nossa paisagem rural, nem que seja a golpes, nem que se a impacto das multidões revolucionárias nas praças.
Ouvira contar que, certa vez, o pai fora enxotado cruelmente, pelo capataz do amo, pelo simples fato de terem discutido sobre uma cuia de feijão. Sofria, ele próprio, as angústias daquele servilismo, doendo, agora, sobre o corpo exausto, com o suor da agonia que lhe escorria pela alma, fermentando, então, no íntimo, a convicção de que a dignidade humana não poderia ser tão aviltada. Urgia uma reação e João Pedro, à sombra do Sobrado, meditava e sonhava com um mundo melhor para os seus filhos. Eles não haveriam de amargar a mesma servidão. Sonhou. Haveria de pagar pelo crime de ter sonhado. O seu sonho era uma visão perigosa de liberdade. Os latifundiários não podem compreender que os corações dos humildes possam aninhar tão elevados sonhos. Contrataram sicários, armaram pistoleiros, puseram-se na tocaia. João Pedro deveria ser eliminado.
Acuso, perante o governo e a Paraíba, que há um sindicato da morte implantado na Várzea para ceifar a vida dos homens do campo. Ninguém se iluda: aquilo não foi mandado de um homem só. Todos devem se levantar em favor da luta dos camponeses. Todos, principalmente vós, pessoense, depositários da vida indômita da raça tabajara, para que, em face da violência e da opressão, os camponeses não se sintam desamparados. Mataram João Pedro. Nunca mais poderei os seus olhos. Os olhos dos mortos não choram. Ele nos deixou, no transe derradeiro da vida, a dignidade final da sua morte. Sigamos o seu último exemplo. Ninguém derramará mais lágrimas. Os seus olhos queriam dizer que os camponeses, de tanto verterem suor, não têm, sequer pranto para derramar outras lágrimas.
Paraibanos, esta cruzada é diferente das demais porque é maior do que todas as outras. Não há um candidato, não há partido político, não há um interesse exclusivista a ser defendido. Esta insurreição é hoje na história da Paraíba o seu grande apostolado. Ou defendemos o homem do campo, numa onda de solidariedade pacífica e irreprimível, pressionando as elites dirigentes para uma revisão da estrutura jurídica vigente, que os depaupera e degrada, efetivando urgentemente a reforma das leis agrárias, ou o Brasil será a pátria traída pelo poder econômico que já nos vem atraiçoando nos governos da República e no parlamento nacional.
É inútil matar camponeses. Eles sempre viverão. Antes de morrer, João Pedro era apenas a silhueta de um homem no asfalto. Mas, agora, paraibanos, João Pedro virou zumbi, virou assombração. É uma sombra que se alonga pelos canaviais, que bate forte na porta das casas grandes e dos engenhos, que povoa a reunião dos poderosos, que grita na voz do vento dentro da noite, e pede justiça, e clama vingança. Que passeia pelas estradas de Sapé, que fala, pela boca de milhares de criaturas escravizadas, a mesma língua que, com a sua morte, não se perdeu porque a mensagem dos verdadeiros líderes não se esgota.
Pessoenses: meditemos profundamente na destruição de João Pedro, da tremenda cilada que armaram contra o inesquecível líder, na carga de ódio que caiu sobre si com o peso de um destino. Ele sofreu no próprio sangue a grave ameaça que existia contra todos nós. Que todos os patriotas dobrem o joelho diante do seu túmulo".
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